Foto: Arquivo/Câmara dos Vereadores

Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo de 20/9/2019

Cemitérios: lembrar para não repetir

* Eduardo Suplicy e Antonio Donato

No dia 28 de agosto, quando a Lei da Anistia completou 40 anos, a Câmara Municipal de São Paulo demonstrou de forma inequívoca seu papel visando justiça, memória e verdade histórica ao modificar o projeto de lei que, originalmente, apenas autorizava a concessão dos cemitérios e do serviço funerário da cidade à iniciativa privada.

A proposta não levava em consideração dois pontos cruciais: o que a concessão representaria para as famílias que não podem arcar com custos de um funeral digno; e a perspectiva histórica em relação aos fatos ocorridos em períodos de autoritarismo político em nosso país, a exemplo das ossadas encontradas na vala clandestina de Perus, em 1990, no cemitério Dom Bosco, onde mortos políticos foram sepultados ilegalmente com apoio do Estado.

No plano nacional, o governo Jair Bolsonaro (PSL) ataca de forma feroz as instituições responsáveis pela elucidação de fatos ocorridos na ditadura militar, tal como a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. A comissão é parte do grupo de trabalho formalizado em 2014 por Prefeitura de São Paulo, governo federal e Universidade Federal de São Paulo com o objetivo de analisar restos mortais aplicando técnicas de antropologia e investigação forense.

Com o voto favorável de todos os vereadores, trabalhamos para que o projeto, parte de um plano de privatizações, se voltasse para essas questões. Apresentamos emenda para que o município e o futuro concessionário garantam gratuidade e serviços de qualidade às famílias de baixa renda, incluindo o direito pleno a espaço para velório —algo não observado atualmente, o que deve promover uma regulamentação mais inclusiva por parte da prefeitura.

Também apresentamos emenda para instituir e preservar memoriais destinados aos mortos e desaparecidos políticos, incluindo infraestrutura voltada para estudo e pesquisa científica que permita a continuidade de trabalhos de identificação em qualquer circunstância, a despeito das dificuldades impostas pelo governo federal. Tudo isso com participação da sociedade civil.

Tais medidas são fundamentais para que o serviço funerário não possibilite a repetição de atos praticados sob regimes de exceção ou até mesmo em períodos democráticos, como ocorre com as vítimas de assassinatos em todo o Brasil.

A Câmara Municipal de São Paulo manteve a coerência. Em 1990, sob a presidência de Eduardo Suplicy (PT), instituiu a CPI que investigou o caso das ossadas de Perus. Desde 2012, trabalhou-se pela instituição na Casa da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog. Seus trabalhos, realizados sem viés partidário, foram presididos por Gilberto Natalini (PV), relatados por Mario Covas Neto (então PSDB, atual Pode) e publicados em relatório sob a presidência de Antonio Donato (PT).

O prefeito Bruno Covas (PSDB), em demonstração de equilíbrio e de justiça que a política pode promover, assumiu o compromisso de incorporar as propostas, uma conquista do debate feito de forma saudável. Em matéria de memória, justiça e verdade, é preciso lembrar para não repetir.

Eduardo Suplicy

Vereador de São Paulo pelo PT, presidente de honra da Rede Brasileira da Renda Básica, senador de 1991 a janeiro de 2015 e doutor em economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA)

Antonio Donato

Vereador pelo PT na Câmara Municipal de São Paulo e ex-secretário municipal de Governo (2013, gestão Haddad)